sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Francisco Souto Neto: CABO NORTE E O SOL DA MEIA-NOITE: É AQUI QUE O MUNDO ACABA


Jornal Água Verde – Ano 19 – Maio 2009
Diretor presidente: José Gil de Almeida

Página 16:


Capa:




CABO NORTE E O SOL DA MEIA-NOITE: É AQUI QUE O MUNDO ACABA
Francisco Souto Neto

O Sol da meia-noite sempre povoou a minha imaginação na infância. Quando eu soube da existência desse Sol lendário e, na minha ingênua meninice, quase improvável, pedi a meu pai que me explicasse tal fenômeno. A eclíptica, o efeito giroscópio, rotação, translação, solstício: a explicação paciente e detalhada de meu pai sobre um fenômeno físico perfeitamente normal, não me impediu imaginar a Terra girando no espaço, balançando, indo e vindo ao redor do seu eixo, num mágico ritmo de dança cósmica. E ficou em mim, para sempre, a idéia de que existia um lugar no mundo, onde o astro-rei, durante dias e semanas, permanecia aparentemente dando voltas pelo éter celeste sem jamais tocar a linha do horizonte.
Adulto, fui à Noruega no auge do verão para tornar real o meu sonho da infância. O confortável navio em que eu viajava subiu através da costa norueguesa, cheia de fiordes e pequenas cidades encantadoras, até atravessar o Círculo Polar Ártico e entrar na região em que, naquela época do ano, o Sol não se põe.
Durante os dias em que navegamos pelo Oceano Ártico, sempre houve ceias e grandes festas à meia-noite, em louvor à presença permanente do Sol. A primeira cidade do Ártico em que o navio parou, foi Hammerfest, cujo símbolo é o urso polar. Dali zarpamos em direção a Honnigsvag, a cidade mais ao norte da Noruega, onde chegamos por volta das 22 horas do dia 9 de junho. Naquele porto, esperavam-nos alguns ônibus para levar-nos em excursão ao Cabo Norte.
Embora fosse o auge do verão europeu, a temperatura estava perto de zero grau. E durante o percurso de Honnigsvag ao Cabo Norte, pude apreciar a estranheza da região. A paisagem parece uma colcha de retalhos irregulares em branco e preto, porque a terra é negra, recoberta por áreas esparsas de neve. Não nascem árvores naquela região. A única espécie vegetal que ali sobrevive são musgos ralos e muito rasteiros que se desenvolvem sobre as pedras, numa área com profundo caráter ártico. Não há nada que se assemelhe ou a que se possa comparar. É uma paisagem única, selvagem, que só não pode ser chamada de monótona porque, aos nossos olhos de habitantes dos trópicos, é fascinante em sua estranheza e solidão.
Às vezes se vê alguma rena correndo entre os blocos de gelo, ou pastando na tundra. E por duas ocasiões avistei tendas de lapões, que lembram aquelas dos índios americanos dos filmes de faroeste, com uma diferença notável: sobre a tenda, expõe-se um chapéu. Se ele é de dois bicos, seu habitante é casado. Se de quatro bicos, é solteiro. Os lapões, ou samis, são os povos indígenas do Círculo Polar Ártico. De raça branca, eles vivem da caça, pesca e criação de renas.
A chegada ao Cabo Norte (Nordkapp) é marcada por um imenso complexo arquitetônico, grande parte subterrâneo, contendo lojas e restaurantes. A partir dali, em breve caminhada, chega-se à borda de um penhasco de 307 metros de altura, um promontório que cai a pique na confluência do Mar do Norte e Mar de Barents, no Oceano Glacial Ártico. Um monumento na forma de um globo terrestre vazado, com uns cinco metros de altura, marca o ponto mais setentrional do continente europeu.
A noite estava nublada, mas vez ou outra as nuvens abriam-se, e através delas o Sol lançava seus raios dourados sobre as águas oceânicas. À meia-noite, com o astro-rei alternando-se entre mostrar-se e esconder-se, algumas pessoas abriram garrafas de champanha e levantaram brindes ao fascinante Sol da meia-noite.
Além daquele promontório, existem só algumas ilhas e, depois, a calota polar. É o lugar onde o continente europeu acaba. Por isso, costuma-se dizer: “Se aqui termina a Europa, é aqui que o mundo acaba”.
Afastei-me das pessoas que falavam animadamente. Fazia frio e ventava. Minha curiosidade fazia-me vivenciar a iluminação irreal, estranha e oblíqua, quase horizontal, o silêncio rompido apenas pelo som do vento, os raios do Sol infiltrando-se e parecendo mover-se por entre as nuvens. Senti-me noutra dimensão. Foi o meu reencontro com o menino que fui um dia e que vive ainda em mim.

-o-

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