segunda-feira, 8 de agosto de 2011

DOIS ENCONTROS COM OS MORTOS NA ITÁLIA por Francisco Souto Neto


DOIS ENCONTROS COM OS MORTOS NA ITÁLIA
 por Francisco Souto Neto


Folha do Batel Ano 4 – Setembro 2002 – Nº 35
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Capa:



Página 4:



DOIS ENCONTROS COM OS MORTOS NA ITÁLIA
Francisco Souto Neto

 
               Catacumbas são cemitérios romanos do século I ao IV, feitos em galerias subterrâneas, às vezes utilizados pelos cristãos – no remoto passado – para reuniões secretas ou cultos. Só na cidade de Roma existem cerca de 40 catacumbas, algumas gigantescas e às vezes interligadas. Além de Roma, há catacumbas também em Nápoles, Sardenha e Sicília. Eu já tive a oportunidade de conhecer algumas delas.

Em pé, os mortos de Palermo

A Sicília é a ilha “chutada” pela bota itálica, onde se localiza o Etna – o vulcão mais ativo do continente europeu – cuja capital é Palermo. No ano de 2001 fiz um cruzeiro de sete dias pelo Mar Mediterrâneo a bordo do Costa Riviera, e um dos portos visitados foi justamente Palermo. O sul da Itália não é uma região muito segura para turistas, frequentemente ameaçados por batedores de carteira e “trombadinhas”, de modo que foi preferível aderir a uma das diversas excursões organizadas pelo próprio navio, dedicando a tarde a conhecer a Catacumba dos Capuchinhos. Ao tomar o ônibus que esperava pelos passageiros no cais, ao lado do navio, a guia apresentou-se e a todos advertiu: "Neste passeio veremos principalmente cadáveres”.
Naquela catacumba estão 8000 mortos, uns poucos deitados, maioria em pé, pendurados ou encostados nas paredes e trajando roupas de época. Os cadáveres mais velhos são de capuchinhos e nobres da Sicília. O mais antigo deles, em bom estado de preservação, é do ano 900, portanto, com 1100 anos! Os mais recentes são do início do século XX.  Alguns esqueletos, às vezes ainda recobertos de débil camada de pele, parecem gritar, outros sorrir. O cadáver adulto mais bem conservado é o de um siciliano morto em 1846.
Corredor dos profissionais. Os melhores do seu tempo:
o pedreiro, o entalhador, o banqueiro, o dentista, e assim
por diante. Costumam ser visitados pelos seus descendentes.

Antonio Prestigiacomo, morto em 1844.

Três mortos em séculos passados.

Mas existe uma menina falecida em 1920, conhecida como La Bambina, que está absolutamente intacta, deitada no interior do seu caixão. Eu me lembrava de ter visto o rosto daquela criança, há alguns anos, num programa de televisão que se chamava “Acredite se Quiser”, apresentado pelo ator Jack Palance. La Bambina continua sendo a principal atração da catacumba. Fiquei a contemplá-la por muito tempo, de certo modo fascinado, porque ela parece dormir envolta pelas suas cobertas, apenas o rosto despontando sereno e inocente. Um laço de fita enfeita os cabelos da garotinha.

"Las Bambina" ("A menina") que se chamava
Rosalia Lombardo. Morta em 1920 e embalsamada.
Parece dormir.

A mumificação de La Bambina foi feita por um médico que morreu sem revelar os métodos que adotou. A irmã gêmea da menina veio visitá-la até ao começo dos anos 90, quando faleceu. Desde então, La Bambina não tem mais recebido visitas de familiares.
No Dia de Finados, em Palermo, os pais costumam levar os filhos às catacumbas, para que visitem seus antepassados. Segundo o costume local, a energia elétrica é desligada naquele dia, e os visitantes valem-se de velas. Não há, entretanto, absolutamente nenhum terror, nem a mínima intenção de assustar a quem quer que seja. Tudo é feito com a maior naturalidade. Aquilo é para os sicilianos um simples fato cultural, uma tradição, um ato de respeito.

Catacumba dos Capuchinhos em Roma

Noutra ocasião eu me encontrava em Roma, quando visitei outra catacumba, também de capuchinhos, bem mais em forma de cripta do que de uma catacumba propriamente dita, anexa à Igreja Santa Maria della Concezione, em plena Via Veneto, uma rua elegante e movimentada conhecida desde os tempos alegres della dolce vita de Fellini... Localiza-se no primeiro quarteirão da referida Via Veneto, a poucos metros da Piazza Barberini, em cuja esquina está a famosa Fonte das Abelhas, da autoria de Bernini.
A igreja foi construída em 1624. Dentro dela há uma sepultura sem nome, próxima ao altar, ao rés do chão, sobre a qual todos os visitantes pisam ao circular pelo templo. Ali está enterrado o cardeal Antonio Barberini, da riquíssima família romana e irmão do Papa Urbano VIII. Por ser capuchinho com voto de pobreza, o cardeal Barberini ordenou que ao morrer, num ato de humildade, fosse enterrado em cova cuja lápide, para ser pisada por todos, não contivesse o seu nome, mas apenas o triste epitáfio em latim: “Hic jacet pulvis, cinis et nihil” (“Aqui jazem pó, cinzas, e nada”).
Sob a igreja, mas com entrada por fora, pela Via Veneto, está uma catacumba diferente, inteiramente decorada com os ossos de 6000 irmãos capuchinhos. O curioso é que tais ossos, desmembrados dos seus donos, ornamentam as paredes formando verdadeiros florais rococós. Do teto pendem lustres compostos com ossos. Cornijas, molduras, tudo, absolutamente tudo, é feito com ossos humanos dispostos como peças decorativas. Ligados por arames invisíveis, formam coroas de espinhos, crucifixos e corações sacros. Um dos poucos esqueletos completos é o de uma princesa Barberini que morreu ainda criança. Alguns esqueletos adultos também foram conservados inteiros, vestidos com trajes eclesiásticos, mas estão sempre cercados pelos “adereços” que formam, nas paredes e tetos, “elegantes” traçados.

Corredor decorado com ossos humanos.
À direita, as diversas capelas.

Crânios de capuchinhos.

Capela com paredes decoradas por caveiras
e ornamentadas com ossos menores. 

Teto de uma das capelas.

O teto desta capela forma "flores"
com ossos ao redor de um esqueleto.

Detalhe da fotografia anterior. Teto de uma das
capelas. O esqueleto central simboliza a Morte,
e sua foice é toda formada com ossos humanos.

Por toda parte, as órbitas oculares vazias dos crânios parecem seguir os movimentos dos visitantes. Apesar disso, a catacumba não chega a ser lúgubre, talvez porque os ossos estejam dispostos de modo a “enfeitar” os diversos cômodos, ou capelas, simulando uma impressão de macabra “beleza”. Ainda assim, ao sair do recinto, vi uma inscrição sobre a porta, que resume a triste realidade dos restos mortais ali expostos: “Nós fomos o que você é”.
É preciso que se compreenda que neste contexto as catacumbas, ao preservarem ossos dispersos ou cadáveres mumificados e vestidos, impõem, principalmente, o respeito aos mortos, tratados sempre com reverência, fazendo-nos refletir sobre a efemeridade da vida.

Ilustrações originais: Foto 1 – La Bambina, morta em 1920. Foto 2 – Pessoas mortas em catacumba de Palermo.
-o-

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