quarta-feira, 31 de agosto de 2011

OLÍMPIA, SANTUÁRIO DE DEUSES E SEMIDEUSES por Francisco Souto Neto


OLÍMPIA, SANTUÁRIO DE DEUSES E SEMIDEUSES
por Francisco Souto Neto


Jornal do Centro Cívico Ano 3 – Agosto 2004 – Nº 19
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 13:


Capa:




 OLÍMPIA, SANTUÁRIO DE DEUSES E SEMIDEUSES
Francisco Souto Neto


Num cruzeiro de uma semana pelos mares Adriático, Jônico e Egeu, a bordo do navio italiano Costa Victoria, parti de Veneza com meu companheiro de viagem Rubens Faria Gonçalves, e no segundo dia de navegação atracávamos no porto de Katakolon. Ocupávamos a suíte nº 11108, no 11º deck do gigantesco navio.
O telefone-despertador acordou-nos às seis horas de um 2 de setembro – por coincidência, meu aniversário. Mas naquela manhã nem me lembrei do detalhe da data, pois estava muito ocupado com a perspectiva do dia que teria em frente. Olhei pela janela e vi a costa do Peloponeso. Após o café da manhã, desembarcamos e tomamos o ônibus da excursão que, em meia hora, nos levou a Olímpia, onde realizaram-se as primeiras olimpíadas da Antiguidade.

Os primeiros jogos olímpicos

Olímpia era um centro religioso e os primeiros jogos olímpicos começaram a ser ali celebrados em honra de Zeus, o pai de todos os deuses da Grécia. O estádio comportava multidões, talvez de até 50 mil pessoas, que assistiam às disputas entre atletas vindos de todo o extenso mundo grego que abrangia desde a península itálica até à Índia, incluindo-se o Oriente Médio e o norte da África.
Naquele tempo os atletas competiam nus, porque os gregos cultuavam o corpo humano. As mulheres eram proibidas de assistir aos jogos, e aquela que o fizesse seria condenada à morte.
Os atletas não podiam trapacear. Se um deles fosse pego pelos fiscais, passaria pela vergonha de ser açoitado em público, e ainda teria que pagar pesadas multas. O vencedor ficava famoso e ganhava o status de semideus.

Rubens Gonçalves no corredor por onde entravam correndo
os atletas que iriam participar dos jogos olímpicos.

Souto Neto filmando o estádio olímpico
conservado como era desde o ano 400 a.C.

O estádio, com quase 200 metros de comprimento, está perfeitamente identificável, com sua tribuna de 2400 anos ainda intacta. Os atletas ingressavam naquela estádio através de um corredor em forma de túnel, do qual subsistem apenas um arco e as paredes. Dei uma corrida por aquele caminho, imaginando como se sentiriam os atletas que por ali passavam em tempos remotos...

O Templo de Zeus

Edificado sobre um imenso embasamento, o Templo de Zeus era um dos mais famosos santuários do mundo grego. A estátua daquele que era o deus mais importante do panteão helênico, e que foi uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, já não existe, mas sabe-se que era da autoria do escultor Fídias, mais ou menos do ano 400 a.C., e estava sentada num trono. Feita em marfim e ébano, enfeitada com ouro e pedras preciosas, teria... 15 metros de altura, o equivalente a um prédio de cinco andares. Fala-se que a estátua tinha o cenho franzido para atemorizar os visitantes porque, segundo se acreditava, quando Zeus franzia a fronte, o Olimpo tremia. Diz-se também que os gregos preocupavam-se com o fato de que a cabeça do deus estivesse quase tocando o teto do templo e temiam que, se um dia ele se levantasse, derrubaria o edifício.
E o templo realmente ruiu. Mas foi um terremoto que provocou o desastre. Tudo o que restou foi o piso da imensa construção. Uma inteira ala das suas altíssimas colunas atiradas ao solo pelo desastre sísmico, foi assim conservada para sempre, pois os gregos quiseram manter o registro daquele tipo de calamidade com o qual são obrigados a conviver há milênios.

Souto Neto nos fragmentos do que restou das
colunas de uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo.

Rubens Gonçalves sentado no piso do templo de Zeus. As
colunas estão como ficaram ao serem destruídas pelo terremoto.


O Museu Arqueológico

O museu de Olímpia é extraordinariamente rico. Dentre centenas de outros tesouros, como o friso do templo de Zeus, encontra-se ali a estátua original “Hermes com Dionísio menino”, que me surpreendeu por ser muito alta, talvez uns quatro metros, e também as do imperador Adriano e Antinuus.

"Hermes com Dionísio Menino", Museu de Olímpia.

Após deixarmos o recinto arqueológico, o ônibus parou um pouco na rua principal da moderna Olímpia para que as pessoas pudessem fazer compras. Rubens Gonçalves escolheu uma pequena e preciosa ânfora pintada à mão pelo artista conhecido no Peloponeso por “The Centaur”, com o tema “O Enigma da Esfinge”. Após comprar e mandar embrulhar, deu-me o pacote de presente. Fiquei surpreso por alguns instantes, sem entender, quando me lembrei de que aquele memorável dia passado em Olímpia, 2 de setembro, era meu aniversário.
Voltamos ao navio e seguimos para o próximo porto do nosso cruzeiro: Kusadasi, Turquia, no Continente Asiático, onde mais História nos aguardava.

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OBSERVAÇÃO: Este texto foi também publicado pela Folha do Batel de Agosto 2004, jornal da propriedade de Celina Suzy.

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terça-feira, 30 de agosto de 2011

EUROPA, CÃES E BOAS MANEIRAS por Francisco Souto Neto


EUROPA, CÃES E BOAS MANEIRAS
por Francisco Souto Neto


Jornal do Centro Cívico Ano 3 – Julho 2004 – Nº 18
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 13:


Capa:



 EUROPA, CÃES E BOAS MANEIRAS
Francisco Souto Neto


Na época em que uma Copa do Mundo de futebol foi realizada na França, lembro-me de ter casualmente assistido pela televisão, se não me engano no programa de Ana Maria Braga, a uma senhora que fazia algumas recomendações de boas maneiras aos brasileiros que estivessem programando viagem àquele país. Segundo ela, procedimentos considerados normais no Brasil poderiam ser recebidos pelos franceses como ofensivos.
Dizia aquela senhora que, ao entrar numa banca de revistas ou numa loja, seria considerado de má educação fazê-lo sem cumprimentar a quem estivesse atrás do balcão. Bonjour Madame, ou Mademoiselle, ou Monsieur (Bom dia Senhora, ou Senhorita, ou Senhor) e que, mesmo que estivesse ali uma vendedora muito jovem, o tratamento respeitoso de “senhorita” não poderia ser dispensado. E que, entre outras coisas, a fórmula correta para aceitar ou recusar algo, seria sempre: “Sim, senhorita, por favor”, ou “Não, senhorita, obrigado”, conforme o caso.
Outro detalhe lembrado pela senhora: “Jamais deixe de pedir desculpas caso esbarre em outra pessoa, ainda que muito de leve. Pardon! (“Desculpe-me!”) seria a palavra a distinguir um cavalheiro ou uma dama de uma desprezível criatura não civilizada.
Observou também que, à mesa, jamais se usasse a faca para empurrar comida ao garfo, coisa corriqueira, mas muito feia, no Brasil, porém inaceitável aos franceses, que considerariam o gesto grosseiro. A faca deveria repousar obliquamente na borda do prato, sendo usada somente para cortar aquilo que não pudesse ser seccionado pelo garfo...
Essas normas, creio eu, nada têm de novo aos brasileiros bem educados, pois são válidas também tanto para o nosso país quanto para quaisquer outras nações de formação europeia. Contudo, e lamentavelmente, aquela senhora tinha razão em suas orientações, porque tem havido, sim, muitos exemplos dessa falta de educação por aqui. Mas o outro lado do Equador não está de todo imune às falhas...

Cães e seus donos mal educados

Tenho notado que nos países europeus de origem latina as pessoas não têm sido tão rigorosas no tocante aos cães e às boas maneiras. Desde que, ainda muito jovem, viajei à Europa pela primeira vez, venho observando, principalmente na Itália, que não se dá muita importância à higiene nas ruas. Enquanto estava sendo filmado, eu mesmo quase perdi o equilíbrio ao escorregar em cocô de cachorro na Piazza Navona, uma das mais belas de Roma, o que ocorreu também num dos maravilhosos becos de Veneza. As cenas, em vídeo, motivo de risadas posteriores, são uma permanente lembrança do quanto os italianos podem ser desleixados nesse ponto.
Mas nos últimos anos, principalmente em cidades do interior dos mencionados países, tenho visto, em cantos mais reservados das praças públicas, aquilo que chamei de “privada de cães”, que são espaços delimitados por cercas quase ao rés do chão, forradas de areia e com um ou mais cepos de árvore no centro, como se fossem pequenos postes.


Francisco Souto Neto apontando a um "toilette canino" 
no Parque da Cidade, centro de Honfleur, França.

Segundo informações que recebi, funcionários fazem limpeza diária, substituindo a areia já usada. Na fotografia que ilustra este texto, estou apontando a um “toilette canino” no “Parque da Cidade” em Honfleur, porto da Normandia, França. Aí está um bom exemplo do que as municipalidades francesas estão fazendo pelos proprietários bem educados e seus cães.

Donos bem educados

Não há cão bem ou mal educado. Há, sim, dono bem ou mal educado. E os melhores exemplos de boa educação tenho presenciado principalmente nos países de idioma alemão: Suíça, Áustria e a própria Alemanha. Na Suíça, há muitos e muitos anos, foi onde pela primeira vez encontrei, em determinados pontos das cidades, e também em trilhas dos Alpes ao redor de povoados, pequenos postes dotados de sacos de plásticos, com indicação para o seu uso em vários idiomas e em desenhos: servem para que o dono colete as fezes dos seus cães, que devem ser jogadas na cesta de lixo contígua. Filmei alguns desses lugares para exibi-los a amigos no Brasil.
A Europa é um modelo! E em Curitiba estamos começando a ver que já existe a conscientização dos donos de cães. Tenho notado que alguns desses proprietários, embora ainda em minoria, esmeram-se em carregar papéis e plásticos para limpar as “sujeiras” que seus cães eventualmente façam nas nossas calçadas.
Tenho um Chihuahua que se chama Paco Ramirez de San Martín. Ao sair para passear, de preferência pelos jardins do Centro Cívico, levo os meus “instrumentos de limpeza” e gosto que as pessoas observem quando limpo o cocô que meu cão possa fazer, mesmo que seja sobre a grama, e não apenas na calçada. Um vizinho e velho amigo, Rubens Faria Gonçalves, que reside alguns andares acima, com seu Buldogue Francês chamado Tibério Bouledogue, também age da mesma forma. É, sem dúvida, o bom exemplo há muito assimilado da Europa, que temos tido o prazer de difundir na capital do Paraná. Só através da boa educação, em todos os sentidos, poderemos ter a esperança de uma cidade melhor e um país mais organizado.


Tibério Bouledogue e Paco Ramirez de San Martin,
cães bem educados.

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 OBSERVAÇÃO: Este texto foi também publicado no Jornal Água Verde de Agosto 2004, de propriedade de José Gil de Almeida. Também a Folha do Batel (agora de propriedade de Celina Suzy) de Agosto 2004 publicou-o, porém o texto saiu incompleto e, por engano do jornal, foi ilustrado com fotografia de gatos, e não de cães.

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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

UM POUCO DE POESIA


UM POUCO DE POESIA


Jornal do Centro Cívico Ano II – Junho 2004 – Nº 17
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 9:


Detalhe:

Capa:



 UM POUCO DE POESIA

A advogada, escritora e poetisa
Dione Mara Souto da Rosa, com
o chihuahua Paco Ramirez.


A advogada Dione Mara Souto da Rosa acaba de lançar um livro de poemas intitulado O Sétimo Portal.
O prefácio, escrito no ano passado, vem assinado por Francisco Souto Neto, tio e padrinho da poetisa, que assim justifica a obra: “Neste início do século XXI vivemos um momento conturbado no mundo. Uma vez mais, e sempre num crescendo, temos presenciado a expressão do potencial agressivo do homem, manifesta através das guerras, agora provocadas pelos Estados Unidos da América contra países do Oriente Médio – Afeganistão e Iraque – com nefastos resultados de massacres sobre populações civis. (...) No Brasil também vivemos perplexos ante o avanço da violência que, no Rio de Janeiro, assume o aspecto de uma verdadeira guerrilha urbana. As maiores cidades do país enredam-se nas tramas do narcotráfico. A corrupção campeia sem tréguas (...) Curitiba, infelizmente, vai sendo levada de roldão nos pesadelos desta nova era de inquietações e medos. E é justamente por vivermos neste caos que ficamos felizes ao encontrar lenitivos para as nossas desilusões existenciais. E que melhor alívio que o da leitura de uma poesia leve e romântica, recendendo a aroma de rosas?”.

Dione Mara Souto da Rosa, autora de
"O Sétimo Portal" e outros.

Efetivamente, o primeiro verso do livro começa dizendo: “Ontem encontrei você, / Era criança. / Uma borboleta colorida de paixão / Espiava uma rosa vermelha / Perfumada de primavera”.
O Sétimo Portal pode ser encontrado nas boas livrarias de Curitiba.

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A IGREJA DO SANTO SEPULCRO EM JERUSALÉM por Francisco Souto Neto


A IGREJA DO SANTO SEPULCRO EM JERUSALÉM
por Francisco Souto Neto


Jornal do Centro Cívico Ano II – Junho 2004 – Nº 17
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 13:

Capa:



 A IGREJA DO SANTO SEPULCRO EM JERUSALÉM
Francisco Souto Neto


Misteriosa, estranha, quase incompreensível é a cidade de Jerusalém. Festejada e chorada, lugar de antigos esplendores e intensos sofrimentos, ela foi encruzilhada de culturas, berço de religiões e centro do mundo. Terra de romanos e de cruzados, de israelitas, persas e árabes, foi construída e reconstruída tantas vezes, que hoje é muito difícil definir o que está construído sobre o quê.

Visitei Jerusalém no ano de 1991. Naquela época ainda era possível fazer turismo em Israel sem grandes apreensões. Num passeio ao mercado beduíno em Beer-Shiba e à Fortaleza de Massada, o retorno do meu ônibus a Jerusalém foi através de Jericó, em plena Cisjordânia – o que hoje seria impensável, pelo recrudescimento das ações bélicas entre Israel e a Palestina. Infelizmente, passam-se os séculos, arrastam-se os milênios, e Jerusalém prossegue sem conhecer a paz.

A igreja do Santo Sepulcro

Um dos mais importantes monumentos da Cidade Santa é a Igreja do Santo Sepulcro. Munido de um mapa, percorri a Via Dolorosa até chegar ao gigantesco complexo de construções executadas pelo imperador Constantino, cuja consagração ocorreu no ano de 335, no local onde, segundo a tradição, seria o túmulo de Jesus Cristo. Em outras palavras, toda a Igreja do Santo Sepulcro foi construída ao redor do Monte Calvário, onde houve a crucificação de Cristo, e da tumba onde teria sido ele enterrado.
O término da construção da igreja aconteceu nove anos após a primeira visita de Constantino a Jerusalém, na companhia da sua mãe Helena (mais tarde Santa Helena). Como já havia transcorrido mais de três séculos desde a morte de Jesus Cristo, não foi fácil localizar lugares como o Gólgota – ou Monte Calvário – e o próprio local da sepultura, pois Jerusalém tinha sido destruída em 66 d.C. por uma revolta judaica. Após a derrota da segunda revolta judaica (132-135 d.C.), a Cidade de David foi arrasada por ordem do imperador Adriano. As muralhas de Jerusalém foram destruídas e reconstruídas em lugares diferentes. Isto fez com que o Gólgota e a sepultura de Cristo, antes fora da cidade, ficassem abarcados por um dos novos muros. Os verdadeiros locais, no entanto, não podem ser comprovados cientificamente. O que hoje vemos são especulações. Vale lembrar que o chamado entulho dos séculos elevou o chão de Jerusalém em sete metros nos últimos dois mil anos. Portanto, as ruas percorridas por Jesus estão muito abaixo daquelas pelas quais hoje caminhamos.

Porta de entrada para a praça onde se localiza
a Igreja do Santo Sepulcro.

Esta é a fachada da Igreja do Santo Sepulcro.
Às costas de Francisco Souto Neto, a porta
de entrada para o templo.

Sob a cúpula principal da Igreja do Santo Sepulcro,
foi construída esta capela, a mando do imperador
Constantino, e dentro dela fica o túmulo de Jesus Cristo.

Planta do interior da Igreja do Santo Sepulcro,
que é um verdadeiro labirinto, quase uma cidade.

Bem abaixo do nível do solo, às costas de Souto Neto, encontra-se
a igreja onde Nossa Senhora está sepultada. Aquela porta de entrada
dá para uma escadaria que desce a uma profundidade impressionante.

A Igreja do Santo Sepulcro foi várias vezes modificada nestes últimos 1670 anos, especialmente na época das Cruzadas (fachada, campanário, deambulatório e igreja românica em 1149). Em 1808 um incêndio destruiu a rotunda constantiniana, seguido de trabalho restaurador.
É tão grande a igreja que abriga nada menos do que as cinco últimas das quatorze Estação da Cruz, que são: Jesus é despido, é pregado à cruz, morre, é retirado da cruz, é sepultado.

Descobrindo a igreja

Andar pelo interior do templo é uma experiência extraordinária. Logo após a porta de entrada, está a Pedra da Unção, onde o corpo de Jesus teria sido ungido e envolto em lençóis perfumados após sua morte na cruz. Ao lado direito, uma porta conduz a íngreme e estreita escada, sobre a qual lê-se a palavra “Gólgota” – que em hebraico significa “Lugar da Caveira” e, em latim, “Calvário”. Ali existem duas capelas maravilhosas, iluminadas por milhares de velas. À esquerda fica a ortodoxa grega, cujo altar foi construído exatamente sobre a rocha na qual, segundo se crê, foi fincada a cruz de Cristo. A pedra, chamada Pedra do Calvário, pode ser vista por um vidro ao redor do altar. Também é possível tocá-la através de um buraco no chão, sob o mesmo altar. Este é o local da 12ª Estação da via-crúcis. A capela católica romana fica à direita, onde estão as Estações 10ª e 11ª. O altar, todo em prata e bronze, foi doado por um Médici em 1588. Filmei amplamente as capelas do Monte Calvário no momento em que ali orava uma monja. Descendo pela escada até ao térreo, comecei a andar pelos corredores do imenso templo e, por vezes, tive a impressão de estar caminhando pelas ruas de uma estranha cidade. Depois, descendo por larga escadaria com cruzes entalhadas nas paredes por antigos peregrinos, cheguei à Capela de Santa Helena, feita pelos cruzados. Outra escadaria, levando a níveis ainda mais profundos do subsolo, dá na Capela Investio Crucis (“Descoberta da Cruz”), onde Santa Helena teria encontrado a “cruz verdadeira”. O teto dessa caverna, todo em rocha talhada, é em certos pontos tão baixo que se pode tocá-lo com as mãos
Até o telhado da Igreja do Santo Sepulcro é ocupado. Por incrível que pareça, ali existe um pequeno mosteiro etíope. Os etíopes foram obrigados a ocupar o telhado no século XVII quando, por não poderem pagar impostos aos otomanos, perderam para os coptas as capelas que tinham no interior da igreja.

Túmulo de Cristo

O túmulo de Jesus – o conhecido Santo Sepulcro – fica no andar térreo do templo, sobre o qual foi construída uma capela suntuosa. Confesso não ter gostado dos detalhes sobre a porta de entrada ao túmulo, que observei na semi-obscuridade enquanto esperava na longa fila pela minha vez para entrar, pois pareceu-me mórbido; poderiam representar folhas de árvore voltadas para baixo, mas a mim fez-me pensar em asas de quiróptero. Quem visitar o túmulo observe aquele estranho trabalho de algum artista cujo nome se perdeu na noite dos tempos.
Entram três pessoas por vez, porque o túmulo é pequeno. Primeiro, ingressa-se numa ante-câmara, em cujo centro localiza-se uma relíquia repousando sobre coluna com cerca de metro e meio de altura. Em seguida, passa-se por uma segunda porta baixa, na qual, de acordo com a tradição, o Anjo fez rolar a pedra, e desemboca-se no sepulcro propriamente dito.  Num dos cantos, um sacerdote sentado – o guardião do lugar sagrado – lia as Escrituras. O teto é recoberto de lanternas penduradas. A rocha na qual teria sido deitado o corpo de Cristo é recoberta com placas de mármore, que estão polidas em depressões causadas pelo contato de mãos humanas. No dia seguinte, ao visitar o túmulo de Nossa Senhora em outra igreja, encontrei também mármores, ali laterais, que chegam a estar furados em inúmeros pontos, de tantos toques das mãos de peregrinos, como se estes quisessem alcançar os restos mortais da mãe de Jesus, como se desejassem tocar a santidade e o eterno. Também corri os dedos naqueles mármores, impressionado ao imaginar que há mais de mil e seiscentos anos, pessoas cheias de emoção e fé vêm desgastando a pedra com as mãos, enquanto oram. Quantos milhões de dedos ao longo do tempo, quantas esperanças, quantos desesperos, quantos pedidos, quantos agradecimentos – quantas centenas de gerações ali tocaram o mármore e depois desapareceram da face da Terra sem deixar vestígios, como poeira humana, tal como todos nós, de hoje, viremos a ser, em relação a um futuro remoto...
Após sair do túmulo, contornei-o para ver o que havia atrás. Encontrei ali uma pequena capela, com não mais do que um metro de largura, controlada, se não me engano, pelos coptas. Quando me viram, aqueles religiosos vieram ao meu encontro, oferecendo-me a sua mercadoria: óleos dentro de pequenos frascos. Disse-lhes que não queria, agradecendo. Eles insistiam em inglês: “Compre, é barato. Estes óleos estão santos, porque ficam aqui atrás, encostados no túmulo de Jesus”. Afastei-me aborrecido, pensando que ali nem tudo é espiritualidade e que não havia como não pensar no episódio bíblico dos “vendilhões do templo”. Aliás, aquele não era o único comércio ali dentro. Afinal, a Igreja do Santo Sepulcro foi dividida por diversas – e diferentes – seitas cristãs que a controlam: ortodoxa grega, armênia, católica romana e copta, aparentemente harmoniosas, mas sabidamente antagônicas.
Se a Igreja do Santo Sepulcro é, por si só, tão interessante, que dizer da própria Jerusalém? Cem edições deste jornal não preencheriam a extensão das minhas descrições e reflexões. Resta-me, pois, desejar que a Cidade Santa, venerada e sofrida, encontre, neste despertar do terceiro milênio, o caminho da paz.

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domingo, 28 de agosto de 2011

A NOVELA "CELEBRIDADE" E O "VERBO VIM" por Francisco Souto Neto


A NOVELA “CELEBRIDADE” E O “VERBO VIM”
por Francisco Souto Neto


Folha do Batel Ano 4 – Maio 2004 – Nº 49
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 13:

Capa:




 A NOVELA “CELEBRIDADE” E O “VERBO VIM”
Francisco Souto Neto


No capítulo da quarta-feira, 4 de dezembro de 2003, a sofisticada Beatriz, personagem da excelente Deborah Evelyn na novela Celebridade, elegantemente sentada no living de sua mansão, diz ao então seu marido Fernando (Marcos Palmeira): “Meu pai vai vim mais tarde, visitar o Inácio...”. Até ao mês de junho de 2004, a atriz continua demonstrando não conhecer a correta conjugação do verbo vir, o que é uma lástima, porque esse grosseiro erro gramatical quebra o ritmo da sua interpretação correta.
No entanto, a personagem Laura (Cláudia Abreu) que na trama é inculta e de educação rala, no capítulo da quinta-feira 18 de março de 2004, após nadar sozinha numa cobiçada piscina, chama o namorado corretamente: “Pode vir”. Também Eliete (Isabela Garcia) que interpreta uma moça simples e de pouco estudo, no capítulo de terça-feira 16 de março, convida Nelito em bom Português: “Você pode vir comer com a gente”.


Cláudia Abreu, em "Celebridade": ponto
a favor por saber conjugar o verbo vir.

Isabela Garcia em "Celebridade", também
conhece o verbo vir. Ponto a favor.

Deborah Evelyn em "Celebridade", diz: "você pode vim" em
vez de "você pode vir", e "se você vim" no lugar de "se você
vier". Não aprendeu a conjugar o verbo vir. Ponto contra.

Ora, parece-me claro: se é o autor que está errando ao escrever “vim” no lugar de “vir”, as atrizes Cláudia Abreu e Isabela Garcia demonstram, mesmo sem a intenção, ser bem letradas, e fazem com que suas personagens falem corretamente – e isto está certo. Até pessoas que não receberam boa educação também podem, por assimilação, falar como se deve. Mas se o autor escrever corretamente e se o erro for da atriz Deborah Evelyn, isto demonstrará não estar havendo nenhuma ação por parte dos diretores do folhetim e respectivas assessorias, nem dos seis coescritores (escrevem a novela em conjunto com Gilberto Braga: Leonor Basséres, Sérgio Marques, Márcia Prates, Maria Helena Nascimento, Denise Bandeira e Ângela Chaves). Ou, quem sabe, alguns dos escritores, por ignorância, realmente adotem o verbo “vim”, coisa que até apresentadores de programas de televisão – a exemplo de Raul Gil – e entrevistadores e entrevistados vêm fazendo com a maior naturalidade. [Outros exemplos negativos: Ana Maria Braga e Luciano Huck que insistem em “você poderá vim”, em vez de “poderá vir”].
O que mais me impressiona é não haver alguém – um colega de trabalho, um familiar, um amigo – que diga aos autores, ou à própria atriz Deborah Evelyn, que o seu insistente erro no idioma pátrio não é próprio para a personagem que ela faz, a de presidenta de uma das maiores empresas do Brasil, que deveria, supostamente, ter estudado nos melhores colégios.
No ano passado, quando a novela Mulheres Apaixonadas era exibida pela Rede Globo, enviei uma carta ao autor, Manoel Carlos, sugerindo-lhe um maior cuidado com o Português falado pelos seus personagens. Algum tempo depois, a revista VEJA publicou uma reportagem na sua edição de 3 de setembro de 2003, denominada “Mulheres revisadas”, na qual relatou o cuidado de Manoel Carlos ao contratar a professora Rosângela Rodrigues para identificar os erros da Língua Portuguesa expressos na novela, e corrigi-los. Eis um bom exemplo que poderia ser sistematicamente seguido por todos os diretores de novelas, atuais e futuras, de todas as emissoras. Não acredito que a minha modesta carta àquele diretor o tenha feito refletir. É que os erros eram tão escabrosos que, sem dúvida, deve ter havido uma enxurrada de reclamações, às quais, numa demonstração de civismo e boa vontade, Manoel Carlos não resistiu.
Se um dos mais importantes papéis da televisão deveria ser o de educar, que bonito favor fariam ao Brasil o autor de Celebridade, Gilberto Braga, e seus coautores, se a personagem elegante e bem letrada Yolanda (Natália Thimberg) ensinasse à simplória Jaqueline Joy (Juliana Paes) a correta maneira de falar, quando esta usasse o verbo vim. Valendo-se daquele timbre todo especial do qual só Natália Thimberg é capaz, associado ao seu piscar apertado, ela poderia corrigir Jaqueline assim: “Não, não, meu bem, não diga ‘pode vim’, que é errado e muito feio. O correto é ‘pode vir’. ‘Vir’, ouviu?”.
Não é que a trama da referida novela seja exemplar, em que pese a ótima direção e a excelente atuação dos atores – e são todos eles de primeiríssima linha, o que é habitual na Rede Globo. Bem a propósito, a revista VEJA de 19 de maio de 2004 afirmou em reportagem na página 117: “Na semana passada, a novela Celebridade apareceu em primeiro lugar na lista de programas mais apelativos da TV elaborada periodicamente pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados”. Mas se os autores de novelas, a exemplo de Manoel Carlos, fizerem um pouquinho de esforço em prol da Língua Portuguesa, já será de grande valia, porque do jeito que vão as coisas, e com o desastroso impulso que quase todas as emissoras de televisão vêm dando ao horripilante verbo vim, logo estaremos ouvindo a seguinte conjugação: “eu vinhei, tu vinheste, ele vinheio, nós vinhemos...”.

Francisco Souto Neto
Advogado e Jornalista

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RÚSSIA: UM PASSEIO AO PALÁCIO DO ÚLTIMO CZAR por Francisco Souto Neto


RÚSSIA: UM PASSEIO AO PALÁCIO DO ÚLTIMO CZAR
por Francisco Souto Neto


Jornal Água Verde Ano 13 – Abril 2004 – Nº 273
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 13:


Capa:




 RÚSSIA: UM PASSEIO AO PALÁCIO DO ÚLTIMO CZAR
Francisco Souto Neto


São Petersburgo foi fundada em 1703 por Pedro o Grande para ser um porto para o Báltico, tornando-se a nova capital da Rússia já em 1712. Em 1914, sob o czar Nicolau II, teve o nome mudado para Petrogrado. Após a Revolução Russa de 1917 e imediatamente depois da morte de Lênin em 1924, passou a chamar-se Leningrado. Em seguida à Glasnost (abertura) e Perestróika (reconstrução), que determinou o fim do império soviético e proclamou a independência das repúblicas, em 1991 a cidade voltou a chamar-se São Petersburgo.
O Palácio de Inverno dos czares era o Hermitage. A czarina Elizabeth I, filha de Pedro o Grande, foi quem deu à edificação o aspecto grandioso que hoje vemos. Mas foi Catarina II quem, em 1764, iniciou a coleção de pinturas que viria a formar o acervo do futuro Museu Hermitage.

Conhecendo o Hermitage

Durante um cruzeiro pelo Mar Báltico, meu navio, o Song of Norway, esteve ancorado durante três dias em São Petersburgo. Após uns passeios pela cidade, integrei uma excursão para conhecer o Museu Hermitage.


Detalhe do interior do Palácio Hermitage.

A edificação é absolutamente esplendorosa, e a sucessão de corredores, escadarias e galerias estende-se por quilômetros. Colunatas de malaquita, estuques folhados a ouro, gigantescos lustres de cristal, salões decorados com móveis deslumbrantes, tudo impacta ao visitante. Porém o maior tesouro do Hermitage consiste das esculturas e, sobretudo, das pinturas. E é no sótão do museu que estão expostas as mais belas, sobretudo as da autoria dos impressionistas.

Tsarskoe Selo, o Palácio de Pushkin

Não pude conhecer o Grande Palácio de Peterhof porque estava fechado para reformas. Mas eu estava mesmo mais interessado em conhecer outro, o Palácio de Verão que, no tempo dos czares, era conhecido por Tsarskoe Selo (traduz-se como “vila do czar”), situado a 25 quilômetros ao sul de Petersburgo. Após a Revolução Russa, o Tsarskoe Selo – igualmente grafado como “Tsarskoïe Selo” – teve o nome mudado para Palácio de Pushkin, em homenagem ao poeta Alexander Pushkin, que também dá o nome à cidade que abriga o referido Palácio de Verão.
Só a fachada de três andares do palácio tem quase 300 metros de comprimento. Para entrar, o visitante tem que calçar pantufas de feltro sobre seus sapatos, para não ferir o piso da edificação. Os salões do primeiro andar intercomunicam-se por portas enfileiradas através dessas centenas de metros que criam uma perspectiva quase que do infinito. Cada uma das portas é ricamente emoldurada por entalhes de madeira à moda rococó, folhados a ouro. Como parte do palácio foi destruída na guerra por bombardeios, muito do que hoje se vê é reconstrução. Justamente para memorizar tal fato, uma das portas tem uma pequena área sem aplicação de folhas de ouro, para que os visitantes vejam que os entalhes são em madeira e se constituem de restaurações.


Souto Neto em frente ao Palácio de Pushkin.

Souto Neto num dos salões do Palácio de Pushkin.

A mesa do salão de jantar está posta, com pratarias, porcelanas e cristais, como que prestes a receber os czares Nicolau II e Alexandra. Os seus aposentos, indicados por placas, convidam o visitante a um retorno no tempo.
Tudo nos leva a pensar no sinistro Rasputin andando por aqueles corredores faustosos e a lembrar que o Tsarskoe Selo era a residência de Nicolau II e Alexandra, donde foram arrancados, com os filhos, pela violência da Revolução Russa de 1917 e levados para Tobolsk e, mais tarde, para Ekaterinburg (hoje Sverdlovsk ou Stovlorski), onde toda a família foi brutalmente executada em 16 de julho de 1918.

A execução da Família Romanov

Há um livro (que me foi presenteado por minha amiga Marlene Sant’Anna Ribeiro da Silva) editado pela Best Seller – infelizmente esgotado – denominado “O Último Czar”, da autoria de Edvard Radzinsky, que é o que de mais importante, sério e confiável há na literatura mundial sobre o assunto. Radzinsky é o dramaturgo mais encenado na Rússia depois de Tchecov, e suas peças são aplaudidas em todo o planeta. Também historiador, ele trabalhou na biografia de Nicolau II durante 25 anos, resultando na publicação do mencionado livro, um sucesso internacional.


Na capa do livro O Último Czar, a fotografia
de Nicolau II e sua família imperial.

O último czar, embora absolutista, era um homem bem intencionado. Contudo, fraco. Tinha planos de grandes reformas em favor do povo, mas foi tão lento nos seus desejos de mudanças que acabou engolido pela Revolução Russa. O movimento que levou o império russo ao comunismo foi mesmo brutal. Todos os Romanovs que não fugiram da Rússia, acabaram executados sem julgamento e cruelmente.
A família de Nicolau II e Alexandra constituía-se de quatro moças – as grã-duquesas Olga, Maria, Tatiana e Anastácia – e um garoto, o herdeiro denominado czaréviche, de nome Aleksei. O pequeno herdeiro era hemofílico. O monge Rasputin entrou nas suas vidas como um “homem santo”, o “único” que poderia salvar Aleksei das hemorragias e preservar-lhe a vida. Porém o “homem santo” era, fora das paredes do Tsarskoe Selo, dissoluto e amoral, cuja conduta acabou por colocar o povo contra os czares. É claro que a Revolução Russa vinha se esboçando de longe, e por outros motivos, tais como a fome, a miséria e os massacres do povo pela guarda imperial, fatos que eram parcialmente escondidos do czar pelos seus homens de confiança, mas não há dúvidas de que Rasputin foi uma das últimas gotas d’água numa situação política insustentável.
Àquela época, as famílias nobres tinham por hábito registrar seu dia-a-dia em diários. Afortunadamente, os diários de Nicolau II, de Alexandra e do pequeno czaréviche foram preservados. As grã-duquesas, porém, destruíram os seus respectivos, antes de serem presas.
Os inúmeros registros históricos dão alma aos Romanovs, fazendo-nos lamentar a violência que ceifou aquelas vidas, principalmente as dos filhos dos czares: o inocente e pequeno czaréviche Aleksei tinha apenas treze anos de idade! Com a família imperial, também o seu médico dr. Botkin, a dama-de-companhia Demidova, o lacaio Trupp e o cozinheiro Karithonov foram fuzilados. Um trecho do livro: “Demidova corria de um lado para o outro tentando proteger-se com uma almofada. Ela foi derrubada por baionetas. Quando todos haviam caído, os executores os examinaram e deram fim aos que ainda estavam vivos, a tiros ou estocadas. Da família Romanov, apenas Anastácia foi golpeada por baionetas”.
Corri os dedos pelos corrimões das escadarias do Tsarskoe Selo, toquei delicadamente os batentes dourados das portas, olhei a trama de madeiras nobres do piso, lembrei-me da maneira carinhosa como o último czar se referia ao seu lar, e, um tanto melancólico, não pude deixar de sentir um pouco da energia que emana daquele lugar onde aconteceram fatos que alteraram o rumo da História e mudaram o mundo radicalmente.

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sábado, 27 de agosto de 2011

VENEZA, SENHORA DO MUNDO por Francisco Souto Neto


VENEZA, SENHORA DO MUNDO
por Francisco Souto Neto


Jornal do Centro Cívico Ano II – Dezembro 2003 – Nº 14
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 11:



Capa:



 VENEZA, SENHORA DO MUNDO
Francisco Souto Neto


A cidade de Veneza foi construída sobre centenas de ilhotas situadas numa laguna, separadas por incontáveis canais, a quatro quilômetros de distância da terra firme. Por volta do século XV era a maior cidade do planeta e uma das mais poderosas nações do mundo. Era a República Sereníssima de Veneza.

A história da Sereníssima

A história de Veneza é muito antiga, pois por volta do ano 500 as ilhas da laguna situada no litoral do Mar Adriático começaram a ser habitadas. Em 726 foi eleito o primeiro magistrado supremo da região vêneta, com o título de doge (duque) e muito cedo lançou as bases de um fabuloso império comercial. Participou das Cruzadas e depois, graças a Marco Polo, estabeleceu relações comerciais com o Extremo Oriente. No século XIV a população de Veneza atingia os 100 mil habitantes, tornando-se a maior cidade do mundo. Nem a queda de Constantinopla em favor dos turcos, em 1453, abalou o poderio veneziano.
Cheia de extraordinários palácios, seu declínio começou só após a descoberta das novas rotas atlânticas – os novos caminhos para a Índia – contornando-se o Cabo das Tormentas. Mas apenas em 1866 Veneza foi anexada à Itália.


O mapa de Veneza, ao centro, com Murano, Burano
e Torcello ao norte, e a Guidecca e o Lido ao sul.

Impressões de Veneza

No final do século XIX Veneza foi unida ao continente por um aterro sobre a laguna, com quatro quilômetros de extensão. A cidade continental chama-se “Veneza Mestre”. Para os turistas desavisados, aí poderá estar o primeiro equívoco da sua viagem: quando o trem pára em Veneza Mestre, alguns desembarcam pensando que chegaram ao seu destino. Mas em seguida o trem segue em direção à verdadeira Veneza, através do aterro. O ponto final é a Estação Santa Luzia (em italiano escreve-se “Lucia” e pronuncia-se “lutchía”).
A cidade de Veneza não é muito grande. Na forma de um peixe, tem cerca de sete quilômetros de comprimento por uns dois e meio de largura. Ela é cortada por um grande canal – chamado, muito apropriadamente, de Canal Grande – que serpenteia pelo seu centro como um S invertido, que se liga a muitas centenas de outros canais menores. Obviamente, na cidade não circulam carros, mas embarcações: os vaporettos (que são os ônibus), as gôndolas (caríssimas, reservadas aos turistas ricos ou aos mais “deslumbrados”), os targhettos (que fazem a travessia de pedestres de um lado ao outro do Grande Canal, já que este, em toda a sua extensão, conta com apenas três pontes) e os barcos de todas as espécies imagináveis: barco-policial, o dos bombeiros, o nupcial, o funeral... e uma infinidade de outros.
Numa das vezes em que estive em Veneza (e já visitei a cidade por quatro vezes, jamais em excursão, sempre por lá permanecendo por muitos dias a cada vez), tive a sorte de assistir à Grande Regata Histórica, um acontecimento que ocorre somente no primeiro domingo de setembro. Nessa ocasião desfilam grandes e luxuosas embarcações, até as que eram usadas pelos Doges, todas revestidas de folhas de ouro.

Labirinto e beleza

Depois de instalado no seu hotel, o turista quer sair pelos becos e ver os canais. E é só trocar os primeiros passos para descobrir que Veneza é um labirinto. Se alguém, por exemplo, sair em direção à Praça de San Marco, é capaz de, uns 30 minutos depois, descobrir-se de volta, sem querer, à porta do seu hotel. É muito comum andar-se em círculos sem que se perceba.
Em minha primeira viagem à antiga República Sereníssima, passei a me orientar pela posição do sol e pensei até em comprar uma bússola para me deslocar pela cidade. Nas vezes seguintes, porém, fui aprendendo a andar pelo labirinto veneziano, e hoje orgulho-me de caminhar despreocupadamente, quase sempre sem me perder...


Souto Neto com pombos da Piazza di San Marco,
e com a basílica ao fundo.

Souto Neto nos becos de Veneza.

Atrás de Francisco Souto Neto, o lugar que no filme "Summertime"
(no Brasil "Quando o Coração Floresce"), com Katherine Hepburn,
era a loja de antiguidades de Rossano Brazzi.

Veneza é um lugar do mais absoluto fascínio. Talvez seja a mais bela e a mais romântica cidade do mundo. Mas tenho ouvido reclamações de turistas que lá estiveram. Falam que os canais cheiram mal, que os becos são escuros, e que as construções estão descascadas... Quem viaja em excursão e, quase sempre, se hospeda não na verdadeira Veneza, mas nos hotéis de Veneza Mestre, que anda seguindo os passos de um guia de turismo, que costuma ter “uma tarde livre” para passear, e que não dispõe de muitos dias de total liberdade para explorar aquele tesouro, dificilmente amará a cidade. “Cheiro”, é claro que tem, como qualquer outra cidade a beira-mar. Mas quem vai ficar preocupado com cheiro de maresia ou de esgoto, quando se está na mais bela cidade do mundo? Sim, as construções são descascadas, mas basta dar uma olhada através de uma janela entreaberta para se notar os tetos com afrescos e detalhes folhados a ouro. Becos escuros? Sim, mas pelos quais senhoras podem andar à noite, rumo a um cinema ou à casa de amigos, sem o temor de serem assaltadas.

Santa Luzia

As maravilhas arquitetônicas de Veneza são do conhecimento de todos, a começar pela Piazza de San Marco e sua faustosa basílica (com tesouros saqueados de Constantinopla pelas Cruzadas), pelos palácios do Grande Canal e ricos museus, e também pelas incontáveis igrejas e outras construções monumentais.
Contudo, para que o leitor perceba a incomensurável riqueza cultural da cidade, vou mencionar apenas um exemplo: o da Igreja de San Geremia e Santa Lucia (Luzia). Essa igreja não consta de muitos dos mais famosos livros-guias de Veneza, e a descobri levado apenas pela curiosidade. Quando passava por uma rua de grande comércio, chamada Lista di Spagna, vi uma igreja no canto de uma praça, na qual entrei para conhecer. Bem próxima ao altar há uma urna de cristal, em cujo interior encontra-se o corpo de Santa Luzia. A santa está vestida, mas com mãos (cruzadas sobre o peito) e pés à mostra, ressequidos, com uma débil camada de pele recobrindo os ossos. O rosto, oculto sob uma máscara lisa de ouro. [Recentemente a máscara lisa foi substituída por outra, de metal, no formato de um rosto]. À direita, em outra urna também de cristal, está o corpo de São Geremias, em circunstâncias idênticas.


Corpo de Santa Luzia já com a nova máscara.

O corpo de Santa Luzia com a nova máscara.
Detalhe das mãos.

Só depois de retornar ao Brasil, pesquisei o assunto. Descobri que a mártir cristã nasceu em Siracusa no ano de 283. Perseguida ao tempo de Diocleciano, morreu em 304 defendendo sua virgindade. De algum modo, os seus restos mortais, em perfeito estado de preservação, foram parar em Constantinopla, donde foram pilhados pelas Cruzadas e levados para Veneza em 1204. A santa é a protetora dos olhos e a ela são atribuídos milagres há já uns 1700 anos. A Igreja de Santa Luzia, construída para abrigar as suas relíquias – isto é, seu corpo – foi demolida no fim do século XIX para dar lugar à estação ferroviária de Veneza – que, a propósito, ganhou o seu nome: Estação Santa Luzia. O corpo da santa foi então trasladado para a igreja de São Geremias, onde os dois santos passaram a descansar quase lado a lado.
O encanto de Veneza, aliado a seus mistérios, faz dela um dos lugares mais fascinantes do globo. Eu acho que quatro viagens a essa rainha das cidades ainda são poucas. Haverei de visitá-la mais uma vez... E mais outra... E outra ainda...

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OBSERVAÇÃO: Esta mesma matéria foi também publicada na Folha do Batel Ano 4, Dezembro 2003, Nº 46, página 9.

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