VARIG, “CARGA VIVA”, EXTRAVIO E INCOMPETÊNCIA
por Francisco Souto Neto
Folha do Batel Ano 4 – Junho 2003 – Nº 42
Diretor-presidente: José Gil de Almeida
Página 10:
Capa:
VARIG, “CARGA VIVA”, EXTRAVIO E INCOMPETÊNCIA
Francisco Souto Neto
A odisseia de um cãozinho que
no vôo Porto Alegre – Curitiba
foi parar em Belém do Pará.
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Um amigo, Rubens Faria Gonçalves, comprou um filhote da raça Buldogue Francês de um canil de Porto Alegre. Escolheu pela internet, e antes mesmo de ver o animal pessoalmente, deu-lhe o nome de Tibério Bouledogue. Preocupado com o transporte do filhote, telefonou antecipadamente à Varig, que o tranquilizou, afirmando-lhe estar habituada a transportar animais em segurança, através de todo o planeta. O único inconveniente seria o de que, nos aviões atualmente em vôo direto entre Porto Alegre e Curitiba, não há compartimento pressurizado para animais. Deste modo, nos jatos adequados para tal, a rota seria, forçosamente, Porto Alegre – São Paulo – Curitiba.
No dia 21 de maio do ano em curso, o filhote – dentro de uma embalagem própria para o transporte das chamadas “cargas vivas” – foi embarcado pelo canil em Porto Alegre , no vôo Varig 2306, que partiu às 7,00h e chegou a São Paulo às 8,35h. Após quase duas horas de espera pela conexão, o filhote embarcaria no vôo Varig 8819, que decolaria às 10,25h com destino a Curitiba, onde deveria chegar às 11,25h... Mas não chegou!
Como fui eu quem levou Rubens Gonçalves ao aeroporto, pude acompanhar todo o impasse que se instalou: a Varig confirmava o embarque do animal em Porto Alegre , mas a partir de São Paulo não encontrava nenhum registro do mesmo. Em contato tanto com Congonhas, quando com o aeroporto internacional de Guarulhos, o funcionário em Curitiba não encontrava referências sobre o assunto. O chefe do setor de cargas do Aeroporto Afonso Pena, então administrando o problema, aventou a hipótese de que em São Paulo poderiam ter posto por engano a embalagem com o animal na esteira... e já imaginamos que algum passageiro, vendo ali um filhote de bouledogue esquecido, o teria furtado. Ou, presumiu o próprio funcionário da Varig, o volume poderia ter permanecido no avião, cujo destino seria Salvador da Bahia. Só após termos literalmente invadido a sala da chefia, a ligação para Salvador, depois de uma hora inteira de tentativas, foi conseguida. Contudo, lá também não foi encontrada a embalagem com a “carga viva”.
Às 14,00h levei meu amigo, estressado e inconformado, de volta para o centro de Curitiba, antes trocado números de telefones com o chefe do setor de cargas da Varig. Às 15,00h, ao exigirmos novas informações, veio a notícia: o cachorro fora finalmente localizado em... Belém do Pará. Ele viajou, por incompetência e desleixo da empresa aérea, do extremo Sul ao extremo Norte do país! Desnecessário observar que, àquela altura, o animal sofria sério risco de desidratação, principalmente por tratar-se de uma raça muito sensível ao calor. E se o destino final do vôo procedente de Porto Alegre seria Salvador, como explicar que a “carga viva” tivesse sido transportada para outro avião com destino a Belém do Pará?! Não havia como explicar o inexplicável. Tudo o que o meu amigo pôde fazer naquele momento, foi exigir que o cão lhe fosse entregue o quanto antes, ainda que a Varig tivesse que usar um táxi aéreo.
Sob nossas ameaças, a Varig embarcou o filhote no vôo 2267, que partiu de Belém às 16,00h e chegou a Brasília às 18,15h. Daí transferiram-no para a TAM, vôo 3881, que decolou às 19,40h, chegando ao Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais, às 21,30h. Às 22,10h, finalmente, o cãozinho foi entregue às mãos do dono.
Rubens Faria Gonçalves com
Tibério Bouledogue são e salvo.
Rubens Faria Gonçalves, indignado, pretendeu processar a Varig, não por dinheiro, mas para que fossem punidos os responsáveis (melhor seria dizer irresponsáveis) pelo sofrimento causado ao animal. E principalmente para que a empresa aérea aprendesse a cuidar convenientemente dos animais embarcados aos seus cuidados. Afinal, o cãozinho poderia ter morrido. Porém exatamente aí resvalamos na superficialidade da Lei para o julgamento de casos subjetivos. É que a Lei, via de regra, tem que observar o fato concreto. Em sua sentença, o magistrado poderia considerar que não houve lesão grave no animal, nem dano de difícil reparação. Sem a ocorrência de dano irreversível, haveria o risco de o magistrado julgar a ação improcedente, já que o filhote, não importa em que circunstâncias, chegou vivo ao destino.
Se o propósito é o de que a Varig seja punida, vale citar o documento que acompanhou a embalagem da “carga viva”. Consta ali, na “Guia de trânsito animal (GTA)”, VF RS, série C, nº 260025, expedida no dia 20.5.2003 pela Divisão de Fiscalização e Defesa Sanitária Animal, do Departamento da Produção Animal, ligado à Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Rio Grande do Sul: “Os animais devem ser transportados diretamente ao destino indicado, pela rota mais adequada ou determinada pela autoridade sanitária. O desvio de rota constitui infração, a juízo da autoridade sanitária”.
Ora, um animal embarcado em Porto Alegre com destino a Curitiba, que é extraviado e vai ser localizado em Belém do Pará, constitui infração gravíssima. Se tivéssemos uma mentalidade primitiva e vivêssemos num país mais doentio do que este já é, evocaríamos a Lei de Talião, que é a do “olho por olho, dente por dente”, e assistiríamos, satisfeitos, à punição que mereceriam os funcionários relapsos da Varig, antes de serem despedidos: em jejum seriam postos numa jaula bem justa ao corpo, que lhes tolhesse todo o movimento, e fossem mandados, no porão dos aviões, a um passeio cheio de escalas, do Sul ao Norte do país, e outra vez ao Sul, tudo num mesmo dia. Eles sairiam trêmulos, sem conseguir movimentar os próprios membros, famintos, sedentos e empapados nas suas fezes, urina e vômito. Porém, e felizmente, é preferível o caminho das leis atuais. E o que realmente importa no contexto desta denúncia, é que seja aplicada uma penalidade à empresa aérea, visando desestimular novas contravenções.
Em casos similares, o mínimo que a Varig poderia fazer seria punir o (ir)responsáveis e encaminhar ao proprietário do animal um pedido formal de desculpas. Enquanto isso não acontece, eu, que por solidariedade vivi todo o impasse daquele fatídico 21 de maio, vou seguir o referido “caminho legal”: a denúncia à autoridade competente – que é a autoridade sanitária , bem mais sensível a casos como este – para que se puna a empresa aérea que se mostra inepta com os animais que teria a obrigação de transportar conforme ela mesma se compromete, e manda a lei.
Se por um lado, no Brasil a Justiça tem andado muito sonolenta, habituando-nos a ver o ágil e rápido avanço da impunidade e da corrupção, ao menos convivemos com uma imprensa desperta e vigilante, sempre pronta a denunciar, no afã de colaborar para que possamos todos viver num país um pouco mais correto e melhor.
Francisco Souto Neto,
Bacharel em Direito e Jornalista.
Matéria publicada simultaneamente na Folha do Batel, Jornal Água Verde e Jornal do Centro Cívico.
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OBSERVAÇÃO acrescentada em agosto de 2011: Naquela ocasião, em 2003, advogados experientes sugeriram que a ação não fosse impetrada contra a Varig, porque a empresa se encontrava em situação financeira complicada, com dívidas acumuladas, próxima a uma falência, de tal modo que acioná-la poderia ser perda de tempo. Realmente, logo depois a Varig quebrou, foi-se, acabou. Hoje ainda voam aviões com o nome Varig, mas essa empresa é uma sucessora daquela que foi poderosa no passado mais remoto, mas acabou falida justamente pela sua própria incompetência.
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