NOS PASSOS DE JOANA D’ARC EM ROUEN
por Francisco Souto Neto
Folha do Batel Ano 4 – Outubro 2002 – Nº 36
Diretor-presidente: José Gil de Almeida
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NOS PASSOS DE JOANA D’ARC EM ROUEN
Francisco Souto Neto
No ano de 1431 a cidade francesa de Rouen, na Normandia, litoral norte da França, testemunhou o martírio de Joana d’Arc, queimada viva na fogueira da praça do Vieux-Marché, acusada pela Igreja Católica de heresia e bruxaria.
A caça às bruxas
No final da Idade Média, a crença na bruxaria generalizou-se e tomou vulto na Europa, notadamente na Alemanha, França, Espanha, Inglaterra e Escócia, quando a chamada Santa Inquisição da Igreja Católica – que de “santa” nada tinha – se instalou nos referidos países. A acusação e a perseguição às supostas bruxas foram sistemáticas e violentas. Tal perseguição foi realizada pelos “Tribunais da Inquisição” nos países católicos, e pela justiça civil nos países protestantes, mas o processo penal era o mesmo em ambos os casos: confissões arrancadas pela tortura e morte na fogueira.
O iluminismo do fim do século XVII e do século seguinte, passou a não permitir a perseguição judiciária por causa das superstições populares ou pseudo-científicas. A última queima de uma bruxa na Europa aconteceu em 1782, no cantão suíço de Glarus. Os arquivos dos tribunais foram pesquisados por historiadores, como o norte-americano Charles Henry Lea, no final do século XIX, muitas vezes acusados de exagero. Mas pesquisas mais modernas confirmam os resultados encontrados por Lea e outros: o número de vítimas condenadas à fogueira, do fim do século XV ao fim do XVIII, pode ser avaliado em nove milhões de pessoas.
A torre e a fogueira
No ano passado, viajando pela Normandia com meu amigo Rubens Faria Gonçalves, hospedamo-nos em Rouen no Hotel Le Morand, que data do século XVII. Tínhamos feito a reserva com meses de antecedência, e o Monsieur Letrate, proprietário do hotel, reservou-nos um espaçoso apartamento no terceiro andar, de cuja janela podíamos avistar, a apenas uns cem metros de distância, a sinistra Torre de Joana d’Arc, onde a heroína da França foi torturada e violentada antes de ser mandada para a morte na fogueira.
Da janela do nosso apartamento no Hotel Le Morand,
avistamos a sinistra torre na qual Joana d'Arc foi torturada
antes de ser mandada para a morte na fogueira.
Fomos conhecer a antiga construção e subimos pelos mesmos degraus já desgastados pelos séculos, galgados pela menina frágil condenada pela ignorância, obscurantismo e pequenez mental dos religiosos, numa mesma época em que os arquitetos erguiam extraordinárias catedrais.
Visitamos a prisão de Joana d'Arc na Torre.
Jardim de acesso.
Porta de entrada à Torre.
Rubens Gonçalves na escada que
leva ao alto da Torre de Joana d'Arc.
Logo dirigimo-nos à Place de Vieux-Marché (Praça do Velho Mercado), onde Joana d’Arc encontrou sua morte dolorosa. Aproximamo-nos do local e fiquei muito impressionado ao ver que aquela parte da praça é pedregosa, quase sem grama, mas o exato lugar da fogueira está coalhado de petúnias em três tons de vermelho que, ao vento, parecem chamas movimentando-se. É de arrepiar.
Embora a morte de Joana d’Arc tenha ocorrido há exatos 571 anos, não há dúvidas quanto ao local exato, porque uns metros além do ponto onde morriam as vítimas da Inquisição, estão as ruínas do “mur par-feu” (muro pára-fogo) que tinha a função de evitar que o vento propagasse as fogueiras humanas. O jardim, de formato circular, porém irregular, é como que contido pelas ruínas do muro. Ao lado está o “pilori” (pelourinho), onde os condenados esperavam sua hora para morrer na fogueira. Bem ao centro do jardim, uma placa diz: “LE BÛCHER – Emplacement où Jeanne d’Arc fut brûleé le 30 Mai 1431” (A FOGUEIRA – Lugar onde Joana d’Arc foi queimada em 30 de maio de 1431” . Em frente à “fogueira” há uma cruz na altura de um prédio de uns cinco andares. Ao fundo de tudo, localiza-se a Église de Jeanne d’Arc, uma igreja de meados do século XX, moderna e esquisita por fora, contrastando com a antiguidade de Rouen.
A placa indica "Le Bûcher" ("A Fogueira"), local que
provocou tanto sofrimento. As petúnias simulam as chamas
onde Joana d'Arc e milhares de outros foram supliciados.
Rubens Gonçalves ao lado do pelourinho, onde os
condenados esperavam a hora de morrer na fogueira.
Praça do Velho Mercado. Souto Neto pisa sobre ruínas
das casas que ali existiram no tempo em que Joana d'Arc
morreu, no começo do século XV.
O Velho Mercado funciona num dos lados da praça a que dá o seu nome, porém seu teto é moderno, da mesma idade da igreja, mas muito criativo porque faz lembrar gigantescas labaredas. A praça é cheia de restaurantes, gente passando com seus cachorros, barracas com vendas de flores... uma verdadeira festa alheia aos dramas e martírios que ali ocorreram no passado.
Todos os dias passávamos pela “fogueira” e nos detínhamos um pouco. Eu ficava quase hipnotizado vendo as chamas – as flores – bruxuleando ao vento. O passado torna-se ali quase palpável, quase concreto. Ver tal jardim foi uma das mais marcantes impressões de todas as coisas que vi e senti em muitas viagens à Europa.
A catedral de Rouen
A catedral é de tirar o fôlego pela beleza da fachada e das suas torres do gótico flamejante. Ela é quase um delírio dos arquitetos medievais que, em diferentes épocas, realizaram as múltiplas torres desiguais. Sua flecha central é altíssima, gigantesca. Meu companheiro de viagem observou que aquela mistura de tantas torres de diferentes formatos e alturas na fachada retilínea, chegava a ser uma confusão. Estava certo. Concordei e disse-lhe brincando: “Sim, é um forrobodó arquitetônico”. Contornamos a catedral, procurando pela famosa fachada oeste, a preferida de Monet, tantas vezes retratada pelo velho mestre impressionista. Monet tinha razão por preferir aquela fachada, harmoniosa, de extraordinário rendilhado e magnífica rosácea. O interior do templo não é menos fantástico. Um dos destaques, visto somente com visitas guiadas, é o túmulo onde está enterrado o coração de Ricardo Coração de Leão.
Fachada retilínea da monumental e imensa Catedral de Rouen,
obra-prima da Arte Gótica, com suas extraordinárias,
desiguais e altíssimas torres rendilhadas.
Rubens Gonçalves na fachada oeste da Catedral
de Rouen, que é uma entrada lateral.
Souto Neto na fachada oeste, que era a preferida
de Monet, e que foi por ele inúmeras vezes retratada.
Após quatro dias de permanência em Rouen, deixamos a cidade rumo a Strasbourg. Antes do embarque, porém, voltamos por alguns instantes à Praça do Velho Mercado. Ao passarmos pela fogueira de Joana d’Arc ficamos, novamente, por uns instantes, como que hipnotizados, vendo as labaredas ao vento...
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Incrível artigo. Adorei!
ResponderExcluirObrigado por ter lido. Beijo!
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