Jornal do Centro Cívico – Ano 4 – Março 2006 – Nº 31
Diretor-presidente: José Gil de Almeida
Página 11:
Capa:
Jornal Água Verde – Ano 14 – Março 2006 – Nº 295
Diretor-presidente: José Gil de Almeida
Página 11:
Capa:
EM JERUSALÉM, TRÊS ERROS, UNS SUSTOS E ALGUMAS COISINHAS MAIS...
Francisco Souto Neto
Cidade estranha, quase inacreditável, é Jerusalém. Sagrada para católicos, judeus e árabes, destruída e reconstruída várias vezes, vem sendo pomo de discórdia há milênios e seu solo palco de lutas, no qual o sangue humano não pára de ser derramado. E ainda assim nós, turistas, insistimos em visitá-la, atraídos pelo seu inquestionável magnetismo.
Antes de viajarmos a Jerusalém, eu e Rubens Faria Gonçalves, turistas independentes que somos, pesquisamos o lugar com meses de antecedência. Sabíamos que dentro das muralhas a cidade é dividida em quatro setores: judeu, cristão, muçulmano e armênio, e resolvemos escolher um hotel que ficasse fora das referidas muralhas, mas bem perto delas e em área “neutra”. Quanto ao hotel, gostamos do nome de um deles: o
Jerusalem National Palace. Olhamos no mapa, e vimos que se localizava fora das muralhas, na rua Az-Zahra, à distância de apenas
300 metros da Porta de Herodes. Fizemos então a reserva, escolhendo um apartamento com sacada voltada para o lado das muralhas e reservamos também o aluguel de um carro, com o qual eu pretendia dirigir desde o Aeroporto de Tel-Aviv até à garagem do referido hotel
em Jerusalém. Mas foi aí que cometemos o nosso primeiro erro: não existem áreas “neutras” na capital de Israel, nem mesmo fora das muralhas...
Pedradas na cabeça
Desembarcando em Tel-Aviv, provenientes de Istanbul na Turquia, fomos logo à agência de locação de veículos, dentro do aeroporto, para pegarmos o nosso carro. Ali a recepcionista perguntou-nos o nome do nosso hotel e, quando mencionei o Jerusalém National Palace, ela assustou-se e começou a fazer alarmantes gestos negativos, e a falar algo em inglês que entendi como “
vão lhe dar pedradas na cabeça!”. Achei que não estava entendendo e arrisquei comunicar-me
em francês. Ela, poliglota, continuou repetindo no idioma dos gauleses: “
Pierre en la tête! Pierre en toute la tête!”. Ela confirmava, e logo entendemos tudo: como o veículo tinha placa dos judeus, se entrássemos com ele no setor árabe, poderíamos ser apedrejados na cabeça... Só então percebemos que fora das muralhas de Jerusalém, a divisão étnica, religiosa e política era ainda muito mais severa, e nosso hotel localizava-se em plena área muçulmana.
Tivemos assim que desistir do carro e, por sugestão da própria moça da agência, tomamos um ônibus para Jerusalém. Quando aquele veículo chegou à muralha da cidade antiga, o motorista deixou-nos no chamado Portão Novo, distante um quilômetro da Porta de Herodes, com a mesma justificativa anterior: aquele ônibus, sendo dos judeus, não poderia entrar no setor árabe, porque poderíamos ser todos apedrejados. Por sorte, a calçada é excelente, e fomos arrastando nossas malas sobre rodinhas, sem problemas, até ao hotel onde, a propósito, tivemos recepção calorosa e simpática.
Tiros no Poço de Siloé
No nosso segundo dia visitamos o Muro das Lamentações, cujos arredores estavam muito festivos porque várias noivas chegavam para tirar fotografias, sob os “hurras” entusiasmados dos seus convidados. Saímos dali pelo Portão Dung (os guias turísticos evitam a tradução deste nome, talvez por ser Portão do Esterco, ou Portão do Estrume, que a eles soa desagradável) porque, três quarteirões adiante, na antiga Cidade de David, localiza-se o Poço de Siloé, que queríamos visitar. Mas a esquina abaixo do Portão Dung (Dung Gate) estava impedida por guardas armados com metralhadoras. “Onde vão?”, perguntou-nos um deles. “Ao Poço de Siloé”, respondemos. “Não podem ir”, sentenciou. “Why not?!”, insisti. E ele: “É que lá está havendo tiroteio”. Hora errada para visitar o Poço de Siloé...
Que contraste: às nossas costas, casais de noivos tiravam fotos: à frente, balas zuniam. Sem saída, imediatamente mudamos nosso roteiro e fomos conhecer um lugar bem mais calmo: a igreja onde está o túmulo de Nossa Senhora.
Barricadas e tanques de guerra
Noutro dia em Jerusalém, fomos a uma agência de turismo e acertamos os detalhes para um longo e fascinante passeio de uma jornada inteira, em microônibus, através do deserto, que nos levou a conhecer o mercado beduíno de Beersheba, o Mar Morto e a Fortaleza de Massada. Como o nosso veículo deteve-se nesses lugares por tempo excessivo, já era noite quando passamos por perto de Jericó, a mais antiga cidade do mundo, que deveríamos e queríamos visitar. Porém o motorista, alarmado, disse-nos que precisávamos correr muito, sem parar em Jericó, porque àquela hora havia o risco de sermos alvejados por franco-atiradores, pois estávamos viajando de volta a Jerusalém através da Cisjordânia.
Ao entrarmos em Jerusalém já era noite, e o motorista deixou-nos, a mim e a meu amigo Rubens, e uma turista norte-americana, numa esquina escura, alegando que não poderia levar-nos aos nossos respectivos hotéis, porque a área estava bloqueada. Descemos em meio àquela escuridão e vimos grande movimento de tanques de guerra e militares posicionando-se entre barricadas levantadas em plena rua. Não sabíamos onde estávamos e começamos a perguntar aos soldados onde ficava o hotel Jerusalem National Palace, enquanto a norte-americana, que nos pediu para não nos separarmos dela, perguntava pela localização do seu hotel. As respostas que recebíamos eram “não sei”, ou apontavam para direções diferentes.
Andamos sem rumo, talvez por cerca de uma hora, sentindo-nos como se estivéssemos em meio a uma guerra prestes a eclodir, ouvindo gritos dos soldados e contornando barricadas. Pobre norte-americana, que parecia aterrorizada. Por acaso, quando percebemos, estávamos chegando ao Jerusalém National Palace. Puro golpe de sorte! A moça, trêmula, dali telefonou ao seu hotel, pedindo ajuda. Só então soubemos, pelo senhor da recepção, que estava acontecendo algo bem “simples”: na manhã seguinte por ali haveria uma passeata a favor de um Estado Palestino, uma legítima e antiga aspiração árabe, enquanto o exército de Israel se preparava para caso a manifestação se transformasse num conflito – que não houve, pois foi efetivamente pacífica.
Apesar de imprevisível, não há nada mais fascinante do que estar na Terra Santa, nos locais do Antigo Testamento, percorrer a Via Dolorosa, ir ao Santo Sepulcro, ao Monte das Oliveiras, passear por ruas milenares. Mas não há como não lembrar do que escreveu Gustav Flaubert, que visitou Jerusalém no distante ano de 1850: “Parece que a maldição do Senhor paira sobre a cidade”. Mais de um século e meio depois, a frase de Flaubert continua muito, muito atual...
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OBSERVAÇÃO:
ADENDO ACRESCENTADO EM 30 DE SETEMBRO DE 2011.
Estive em Israel há 20 anos, em 1991, quando vivi as experiências acima descritas. Passam-se os anos e a relação entre judeus e árabes segue se agravando. Para quem já esteve lá, como eu, e que durante duas décadas vem acompanhando o crescendo dos conflitos, tem a certeza de que a culpa não é do povo judeu, nem do árabe. A culpa recai inteiramente sobre
o governo sionista de Israel. Embora advertido pela ONU de que teria que interromper os assentamentos nas terras dos palestinos, Israel ignora as determinações e insiste em construir prédios e casas na região, onde instalam colonos israelenses. Está errado. Mas a ONU, que proíbe os assentamentos, é contraditória ao fazer vista grossa à desobediência. É uma invasão que apenas fomenta o ódio e provoca reação. Intelectuais e artistas israelenses têm se manifestado contra a política dos assentamentos, e pela televisão tenho visto cenas em que eles, com cartazes pelas ruas, pedem ao governo do seu próprio país o cessar das hostilidades. Não bastasse, ainda há a questão
do muro erguido por Israel em toda a fronteira com o território palestino, mais alto e muito mais extenso do que aquele que existiu
em Berlim. O desdobramento das hostilidades resulta em bombardeios, explosões e mortes de inocentes em ambos os lados.
Este espaço não está propondo, nem está aberto a discussão política, muito menos religiosa. Este adendo é um simples alinhavar, ou atualizar, das experiências descritas no artigo acima, que publiquei em 2006. Mas aos que se interessam pelo assunto, não posso deixar de dar uma sugestão, porém sob o ângulo da arte cinematográfica. Em 2009, o israelense Eran Riklis dirigiu “Lemon Tree”, longa-metragem filmado em Israel, baseado em fatos reais. Esse filme conta a história de uma mulher palestina, viúva, que tem um belíssimo pomar de limões herdado do pai, colado à fronteira com Israel, que começara a ser cultivado há 50 anos, e do qual ela tira seu sustento. A enorme casa vizinha aos limoeiros, distante apenas uns 30 metros, mas do lado israelense, é comprada (ou ocupada) pelo ministro da Defesa de Israel, e o serviço secreto daquele país, por uma questão de segurança, decide pôr abaixo o pomar, temendo que terroristas, protegidos pelas árvores, pudessem atacar o ministro. A mulher resolve resistir, a fim de salvar os belos limoeiros para que assim, com a venda dos limões, pudesse continuar subsistindo. Assisti ao filme recentemente, pelo Telecine Cult. Trata-se de uma obra-prima da cinematografia mundial, que mereceria maior divulgação, e que recomendo altamente, porque foi dirigida por um respeitado israelense que, como tantos outros, não concorda com as arbitrariedades do governo do seu país praticadas contra os palestinos, e as denuncia através da sétima arte.
O DVD Lemon Tree, de Eran Ricklis.
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